Arliete Rocha, Jornal do Brasil
RIO - Deu para sentir saudades. Já fazia um tempinho que a Armazém Companhia de Teatro não investia na dramaturgia original que marcou sua trajetória. Veio a vontade de mostrar o olhar do grupo sobre os grandes clássicos teatrais – e assim chegaram aos palcos Toda nudez será castigada (2005), de Nelson Rodrigues, e Mãe coragem e seus filhos (2007), de Bertolt Brecht.
Agora, soprando 21 velinhas, a trupe de Londrina, que há uma década trocou a cidade paranaense pelo Rio, volta aos textos próprios – sempre líricos e inventivos. A inveja dos anjos, que estréia nesta sexta, no teatro (agora totalmente reformado) que o grupo mantém na Fundição Progresso, também marca a retomada da parceria de Paulo de Moraes com o poeta Maurício Arruda Mendonça, iniciada com o elogiado Alice através do espelho, em 1999, sucesso de crítica e de público.
– Apesar de o Maurício continuar em Londrina, a nossa parceria se dá de uma forma natural. Ele é poeta, tem a beleza da palavra. A minha parte é mais voltada para o desenvolvimento temático e a concretização da ação – explica Moraes, também responsável pela direção e cenografia do espetáculo.
Quem for assistir a Inveja dos anjos vai se deparar com a memória tratada de uma forma delicada, simbolizada por três histórias com ações distintas, mas que se entrecruzam através da amizade que une seus protagonistas.
Os trilhos de uma estrada de ferro, espalhados por todo o cenário, marcam o encontro dos personagens.
– Antes de escrever o texto eu já sabia qual era o espaço que iria usar como cenário. Os trilhos de um trem são uma imagem forte para simbolizar chegadas e partidas e servem como entroncamento das relações cruzadas que marcam o espetáculo – diz o diretor, que, ano passado, encenou Pequenos milagres, parceria com o Grupo Galpão, de Minas Gerais.
O ator Marcelo Guerra vive o carteiro Eleazar, o mensageiro que transita e interfere no rumo das histórias – ele tem por hábito abrir as cartas, ler e determinar em que momento devem ser entregues, dependendo se trazem boas ou más notícias.
Na pequena comunidade, dominada pelos trilhos do trem, aparecem os outros personagens. A menina Natália (Verônica Rocha), aos 9 anos, convive com o peso de uma mãe dependente química. Encara a vida como pode, ora de maneira adulta, ora recorrendo à fantasia para contornar a dura realidade.
A imensa dor, ainda que em curta existência, a leva a procurar o pai, que jamais conhecera. A vida de Tomás (Ricardo Martins), dono de um sebo e escritor eternamente em crise, ganha novo significado a partir desse encontro.
Amiga de Tomás, Luiza (Simone Mazzer) é uma confeiteira que encara uma difícil relação com a mãe, Branca (Simone Vianna), uma velha senhora prisioneira do passado e que depende de cuidados.
A razão da angústia e revolta de Luiza é revelada por um segredo. Noutra ponta, aparece Cecília (Patrícia Selonk), uma garçonete que amarga a perda de Rocco (Thales Coutinho). Mágico por profissão, bon vivant e meio trambiqueiro, saiu para comprar cerveja e retornou 15 anos depois, disposto a recuperar o amor de uma descrente Cecília.
– O que fica evidente na narrativa é a impossibilidade de apagar a memória. O passado começa a aparecer para cada personagem, seja com a revelação de um segredo ou de um fato que até então se desconhecia ou com o retorno inesperado de alguém – analisa o diretor.
A estrutura narrativa fragmentada que marca a dramaturgia do Armazém tem uma lógica interna que absorve o espectador. A pesquisa das obras de Gabriel García Márquez e do autor americano Paul Auster também aparece na montagem.
– Em Cem anos de solidão as relações familiares arcaicas são muito fortes. Já o Paul Auster lida muito bem com as relações afetivas contemporâneas – avalia.
Da obra do autor colombiano, o realismo fantástico é um forte elemento no trabalho de experimentação desenvolvido pelo grupo. A menina Natália recorre a fábulas como Chapeuzinho Vermelho e Alice no País das Maravilhas para amenizar sua dura realidade.
A teatralidade do corpo, um dos pontos fortes na preparação dos atores do Armazém, ganha destaque na construção da personagem Branca. Nos seus devaneios, a velha senhora é constantemente acompanhada por uma espécie de espantalho, caracterizado pela metade de um paletó envolto numa parte do corpo da atriz. Com ele, dança e troca carícias, revelando seu mundo fantasioso e ausente da realidade.
Diferentemente do espetáculo Da arte de subir em telhados (2001), que trabalhava com planos verticais, Inveja dos anjos é tratado num plano essencialmente horizontal.
Com o teatro totalmente remodelado, o espaço cênico reproduz o trecho de uma estrada de ferro que corta a boca de cena de ponta a ponta em uma extensão de 20 metros.
A platéia fica bem próxima do campo de ação, em quatro fileiras. A visão horizontal estimula o público a fazer seus próprios enquadramentos, acompanhando a movimentação dos atores como num filme, tarefa facilitada pela iluminação de Maneco Quinderé.
As vigas de aço e os dormentes que percorrem o chão também sobem para um plano aéreo, uma espécie de variante para onde os personagens se deslocam, revelando seus altos e baixos existenciais.
Serviço
Fundição Progresso – Espaço Armazém – Rua dos Arcos, 24, Lapa (2210-2190). Cap.: 126 pessoas. 5ª a dom., às 20h. R$ 30. Neste domingo, não haverá sessão. Estudantes e idosos pagam meia. 14 anos. Duração: 1h45. Até 21 de dezembro.
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