Rachel Almeida, Jornal do Brasil
RIO - Foi a camaradagem que animou a nova montagem da transgressora peça Dois perdidos numa noite suja, de Plínio Marcos (1935-1999), que estréia nesta sexta, no Espaço Cultural Sergio Porto, no Humaitá, no propício horário “maldito” de meia-noite.
Apesar da diferença de idade, os atores André Gonçalves, 33 anos, e Freddy Ribeiro, 51 – os Paco e Tonho desta nova versão – são amigos há mais duas décadas.
Conheceram-se nas areias do Posto 9, quando o adolescente André começava a carreira artística. Hoje, depois de parcerias no cinema e na TV, comemoram o primeiro projeto nos palcos juntos. A direção é de Silvio Guindane, que também já cansou de beber chope com a dupla de atores no Baixo Leblon.
Aliás, foi ali, entre um copo e outro, que acabou convidado para comandar a encenação do texto, escrito e encenado pelo próprio Plínio em 1966.
– Foi importante dirigir amigos, porque erguer esse espetáculo não foi um processo fácil – declara Guindane, que, nos últimos dois anos, decidiu conciliar a atuação com o trabalho de encenador.
– Foi doloroso, chegamos a ficar ensaiando 12 horas por dia. Sorte que toda a equipe foi muito disciplinada.
A relação de camaradagem também esteve presente nas lembranças de Guindane e de Freddy Ribeiro – ambos conviveram com Plínio Marcos em épocas distintas. Ribeiro chegou a ver a encenação de Dois perdidos numa noite suja com Emiliano Queiroz e Nelson Xavier, nos anos 70. Guindane conheceu Plínio em 1997 e ficou amigo da família.
Depois, fez no teatro outro clássico do dramaturgo paulista, Barrela, e estudou a fundo obra do autor.
– Lembro-me de freqüentar um bar no bairro da Consolação em São Paulo, onde o Plínio também ia – conta Ribeiro.
– Era uma pessoa muito sofrida, que começava a ser perseguida pela censura. Li toda a sua obra e mergulhei no universo marginal de que ele tratava. Na minha avaliação, ele e Nelson Rodrigues são nossos grande dramaturgos.
Foi justamente com Dois perdidos numa noite suja que Plínio Marcos faz sua estréia profissional, em 1966, na pele de Paco, com direção de Benjamin Cattan. No bar Ponto de Encontro, na Galeria Metrópole, em São Paulo, ele e Ademir Rocha deram vida pela primeira vez aos dois tipos marginalizados que trabalham num mercado de peixe, no cais do porto.
Dividem um quarto de pensão, onde se passa toda a ação da peça – na verdade, uma discussão sobre sobre suas vidas, trabalho e perspectivas, numa relação conflituosa. Enquanto Paco é provocador e agressivo, Tonho, mais velho, tem urgência de crescer na vida, fazer valer o estudo; por isso, desenvolve uma espécie de dependência dos valores socialmente aceitáveis.
Neste espetáculo, a fissura aos bens materiais está relacionada a um par de sapatos. Ele inveja Paco, que tem um bom par de “pisantes”, e o outro, ao mesmo tempo em que o considera um parceiro, vive de picuinhas, chamando Tonho de homossexual.
– Paco tem um outro nível de existência – avalia André Gonçalves, que estava há seis anos longe dos palcos e, agora, concilia a peça com as gravações da próxima novela das 21h da Globo, Caminho das Índias, de Glória Perez.
– Ele tem a necessidade de desmoralizar, desprezar o outro. A peça é repleta de violência não só física, mas também verbal. O que transparece é a desesperança.
Levado ao cinema por Braz Chediak, em 1970, e por José Joffily, em 2003 – em que os personagens são imigrantes ilegais em Nova York, Paco é uma mulher (Débora Falabella) e Tonho é interpretado por Roberto Bontempo) – o texto tem um objetivo maior do que expor as mazelas da sociedade, na opinião de Guindane.
– A obra trata dos excluídos, mas o que sobressai é a discussão humana – entende.
– Há uma troca de solidão entre esses dois personagens. Nunca se tornará datada, já que tem um lado humano muito forte. Mas, além disso, soube colocar como símbolo do “prosperar de vida” um sapato em um mundo anterior à proliferação de Nikes, Reebooks e shopping centers.
A peça chega ao Rio com o respaldo de uma bem-sucedida temporada de um mês no Teatro Mundial, em Lisboa, e de uma turnê pelo Nordeste que incluiu Recife, Salvador e cidades do interior da Bahia.
– Nossa idéia era montar a peça na rua, numa esquina do Leblon – revela Freddy Ribeiro, que fez o mesmo com seu último espetáculo, Bonitos e paranóicos.
– Repentinamente, surgiu o convite de Portugal. Eles são apaixonados por Plínio Marcos. Fomos tratados como estrelas de Hollywood, com carro, academia de ginástica, só mordomia. Fiquei até mal-acostumado.
Serviço
Espaço Cultural Sérgio Porto – Rua Humaitá, 163, Humaitá (2266-0896). Cap.: 130 pessoas. 6ª e sáb., à meia-noite. R$ 30. Estudantes e idosos pagam meia. Duração: 1h30. 16 anos. Até 20 de dezembro.
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